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1 de junho de 2006

Relembrando Porto Alexandre III



RELEMBRANDO GENTE DE PORTO ALEXANDRE

por Alfredo Baeta Garcia

Parte III





Para além da população permanente que vivia, toda ela, directa ou indirectamente a pesca, havia o funcionalismo público, próprio de um concelho equipado com todos os serviços normais como Correios, Repartição da Fazenda Pública, Administração, Alfândega, Delegação Marítima, Delegação de Saúde e Hospital, Junta de Exportação, Florestas e Protecção das Dunas e Pároco da Freguesia, cujo patrono era S. Pedro.

As pessoas aqui lembradas teriam, eventualemente, algumas particularidades que, então, as marcassem para ainda estram presentes na minha memória. Dos restantes, que eram o maior número, ainda retenho a lembrança de muitos, mas sem a mesma nitidez e por isso não cabem numa relação que não é um recenseamento da população de Porto Alexandre na década de quarenta.

Todos se encaixavam, melhor ou pior, neste meio social muito característico que já ia na terceira geração aqui nascida, descendentes dos primeiros pescadores algarvios de Olhão que vieram para estas praias. Havia no entanto uma “classe” que não pode deixar de ser referida, a dos agiotas que praticavam juros de enforcado e a que eu recorri por mais de uma vez. Em Porto Alexandre era muito pequena, mas numerosa em Moçamedes, simbolizada pelo Passa Fome. Ao fim e ao cabo era o resultado de o dinheiro do Banco de Angola não ser para emprestar aos industriais de pesca, mas apenas aos comerciantes.

Pessoas houve que, não tendo relações familiares, exerceram grande influência no seu tempo e foram altamente consideradas, de que é exemplo o meu conterrâneo José de Matos Garcia que, para além de grande industrial em Porto Alexandre, foi presidente da Câmara Municipal de Moçamedes e presidente do Sindicato de Pesca do Distrito de Moçamedes, sendo um dos homens mais destacados do seu tempo, tanto em Porto Alexandre como em Moçamedes.

Uma relação desta natureza ficaria incompleta se não fizesse referência à população negra permanente, que era muito reduzida, pois a grande maioria era eventual e constituída pelos chamados Munanos, vindos contratados dos planaltos do Sul e dos Ganguelas. A essa população permanente chamavam Quimbares, supostamente de várias origens, talvez alguns Curocas, rio cujo vale tinha condições mínimas de habitabilidade e ficava próximo da Vila.

Dos homens ainda recordo alguns:

SANGOLAR, mestre de uma canoa de pesca à linha do Tomé Tendinha;

CANGÚIA, também mestre e proprietário de uma canoa cuja mulher, a Beatriz, ainda era viva quando de lá saí;

MACUíCA, contra-mestre de uma sacada da Conserveira, cujo mestre era o Américo Silva ou Juventino Graça;

CARECA, motorita de uma enviada da Conserveira;

JOSÉ REPUBLICANO [1], assim chamado por ter nascido no dia 5 de Outubro de 1910, pescador e parece que ainda era vivo por volta de 1994;

CÉSAR, serralheiro da Conserveira, um grande artista na sua profissão, saído da grande escola que foi, no seu tempo, a Companhia do Sula de Angola;

CARLOS, também serralheiro da Parceria de Pesca;

JOSÉ CHIRULO, caixotero da Conserveira;

DOMINGOS MUCUBAL, ajudante na camionagem de Sousa & Irmão, foi o único elemento da sua etnia que conheci com hábitos de assimilado;

TALAMUCA, pisteiro dos caçarretas da região;

MATEUS, suponho que era Curoca e grande fumador de cangnha;

CHICO, servente da Pensão do Chico da Conceição – Cardoso;

AUGUSTO, mestre do galeão Vissonga;

VELHO, cozinheiro da Messe do Pessoa.

Das mulheres lembro mais nomes e imagens do que dos homens, tais como:

HELENA COMBOIO, que era uma bonita rapariga;

ANTÓNIA, que era ligeiramente cambaia;

DOMINGAS, certamente Curoca e que foi minha lavadeira durante muito tempo;

CAQUINDA, filha do Republicano, que lhe deu uma tareia por ela andar metida com brancos;

CLARISSE, afilhada do Celestino Carvalho que a mulher criou até rapariga;

SEGUNDA GORDA, que na altura já era mulher de certa idade;

CÂMIA, que era zarolha e me deu uma lição de comportamento;

DOMINGAS CANHÓNHÓ, vivia com o João Nunes Cardoso, gerente da pensão do Chico da Conceição, então a única da terra;

GUÉU, tia da Helena Comboio e que viveu com o velho Beja carpinteiro;

JÚLIA, enlatadeira da Conserveira;

JÚLIA, mulher de um pescador quimbare;

CANGO, que esteve presa durante uns meses na Baía dos Tigres por problemas com o Chico da Conceição;

CACHOPA, criada de miúda em casa da Cândida Trocado;

EUGÉNIA ZAROLHA, lavadeira;

MARIAZINHA, filha da Coxa curoca, sogra de um Barreto, era servente da D. Maria Luísa Arrobas da Silva; tinha uma irmã chamada Chitenga;

CATCHAFO, que veio com um contratado Cuanhama e depois por lá ficou;

PALMIRA DO SANTANA, que substituiu a D. Virgínia Maló como chefe das enlatadeiras da Conserveira;

CHICA, filha de um Francisco do Norte, aqui a cumprir pena em liberdade;

CREMILDE, mestiça, enlatadeira do Patrício Correia;

SEGUNDA, filha da Segunda Gorda;

ADELINA, afilhada da D. Adelina do Manuel do Motor;

Em Moçamedes lembro-me da GENINHA, filha do Quarenta Raios; a LAURA HÚMIDA, que foi para Benguela.

Dos Quimbares, homens e mulheres, tenho ideia vaga de outros mais que não consigo localizar, nem pelos nomes nem por outros pormenores.

Todos estes nomes são hoje figuras anónimas que pouquíssimas pessoas cnseguirão retirar desse anonimato, situação agravada com as condições que osa mortos e os vivos tiveram de sujeitar-se no final de uma época que acabou em morte violenta.


NR
[1] Seria, mais tarde, o Regedor de Porto Alexandre.


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Relembrando Porto Alexandre V



RELEMBRANDO GENTE DE PORTO ALEXANDRE

por Alfredo Baeta Garcia

Parte V




MEMÓRIA DA CONSERVEIRA


A Conserveira do Sul de Angola, Lda, que desenvolve a sua actividade especialmente no sector da pesca e sua indústria transformadora, com instalações para o efeito em Porto Alexandre, foi fundada na década de 30 pelos Srs. Dr. Torres Garcia, José de Matos Garcia, Costa Santos, Dr. Carvalho Santos e Prof. Manuel da Piedade Martins. As cotas eram de 50 contos cada uma, excepto as do Dr. Carvalho Santos e Prof. Martins, que eram de 25 contos cada.

Desde muito cedo alguns sócios foram ficando pelo caminho, sendo primeiro o Dr. Carvalho Santos, por nunca ter realizado o capital que subscreveu, seguindo-se Costa Santos, industrial em Moçamedes, cuja cota foi comprada pela Conserveira em tribunal, devido à sua situação económica muito difícil. Anos depois, por volta de 1945, os herdeiros do Dr. Torres Garcia vendem a sua parte à empresa ficando, a partir daí, apenas dois sócios, Matos Garcia e Prof. Martins, o primeiro com o dobro do capital e o único que tinha poderes de gerência, expressos na escritura de constituição, mas que podiam ser concedidos a terceiros por procuração.

Por essa altura o sócio Matos Garcia fixa residência em Lisboa e monta um escritório que efectua a compra das mercadorias a enviar para Moçamedes, onde se pretende desenvolver a parte comercial da empresa e promove a venda das conservas.

Ao mesmo tempo o Prof. Martins muda a sua residência para Moçamedes e abre-se um armazém, no qual também passa a funcionar o escritório, onde fica centralizada toda a escrita, ficando em Porto Alexandre uma pequena secção para controlo e elaboração de elementos contabilísticos elementares.

O Prof. Martins, que até aí agia sob uma espécie de tutela, deu-se a tomar decisões que estiveram na origem do desentendimento que levou à saída do sócio Matos Garcia, que acabou por vender a sua posição aos novos sócios, Gaspar Madeira e Lourdino Tendinha.

No período compreendido entre 1943 e 1950, em que fui seu empregado, A Conserveira era, sem dúvida, a empresa mais importante do distrito de Moçamedes e pioneira em algumas actividades.

A partir desta última data, que coincide com a saída do sócio Matos Garcia, a empresa entra em dificuldades resultantes de más administrações, que a levam à falência e ao seu puro e simples desaparecimento na época de maior desenvolvimento e prosperidade destas actividades em todo o litoral Sul de Angola.

Nesta época a empresa era constituída pelas seguintes actividades e suas diferentes modalidades, todas instaladas em Porto Alexandre, com excepção do escritório e armazém em Moçamedes e escritório em Lisboa:

PESCA
Uma traineira, a Diogo Cão, que foi a primeira embarcação deste tipo matriculada na Delegação Marítima de Porto Alexandre e a pescar na sua zona. Tinha uma capacidade de cerca de Vinte Toneladas de carga;
Duas sacadas, sendo uma motorizada e outra à vela;
Uma armação à Valenciana simples.

FÁBRICA DE FARINHA E ÓLEO
Fábrica mecânica, a partir do que antes fora uma rudimentar bateria de prensas manuais e dois caldeirões para cozedura, incluindo um secador rotativo para guano, que era novidade na época e que nunca foi posto a funcionar; uma prensa manual Marmonier.
Esta fábrica foi construída em Lisboa pela firma Alfredo Alves, sob licença Norueguesa da “Myrnes?”

FÁBRICA DE CONSERVAS
A primeira a ser instalada em Porto Alexandre, com autonomia de laboração, por não ser possível de outro modo, com algo de primitivo em comparação com as suas congéneres metropolitanas de então, mas que seria, na altura, a segunda de Angola. Dedicava-se quase exclusivamente ao atum e subsidiariamente a sarrajão, filetes de cavala e outras variedades de pequena monta.

SALGA E SECA
Tradicional e de média capacidade em relação ao volume de pescado, pois a sua grande maioria destinava-se a farinação.

TRANSPORTES
Um galeão à vela, Vissonga, depois Vouga, para transportes entre Moçamedes e Porto Alexandre, principalmente de lenha;
Uma barcaça;
Uma camioneta de carga para transportes diversos;
Duas pontes em Porto Alexandre, principalmente para descarga de peixe.

OFICINA DE SERRALHARIA
Para apoio a todas as secções.

ESTALEIRO NAVAL
Construção e reparação de barcos de pesca e respectiva carreira para esses fins.

ENFERMAGEM
Instalada sob pressão do então Delegado de Saúde, Dr. Araújo de Freitas.

COMÉRCIO
Estabelecimento de comércio geral, desde fazendas, mercearias, ferragens e artigos de pesca e que durante algum tempo foi o melhor da Vila.
Um armazém em Moçamedes, em edifício próprio, para recepção e distribuição de mercadorias importadas para embarque a partir deste porto, pois os navios de carreira não escalavam Porto Alexandre, a não ser para carregar grandes tonelagens, como farinha e óleos.

ESCRITÓRIO
Em Moçamedes a partir de certa altura, com uma secção em Porto Alexandre, outra em Lisboa, especialmente para compra de mercadorias e venda de conservas, como já foi dito.
Na impossibilidade óbvia de citar números referentes ao movimento da empresa, passo, no entanto, a citá-los no que se refere aos empregados, pretos e brancos, estes até pelos seus nomes que ainda recordo, na sua grande maioria.

Entretanto a empresa instala, em terreno superiormente indicado para o efeito e fora da área das suas actividades tradicionais:

KARAKUL
Com alguns carneiros importados de contrabando da África do Sul, uma exploração para obtenção de peles de que não chegou a tirar-se grande resultado, como aliás aconteceu com todos, e muitos foram, os que tentaram essa actividade.


ORGANOGRAMA
[ clicar nos gráficos para aumentar ]

Pesca


Fábricas / Salga e Seca



Outros



Resumo do Pessoal

86 contratados pretos
a que normalmente se juntava um pequeno número de mucubais, nunca mais de dez, que trabalhavam exclusivamente na secagem de peixe;

41 europeus

4 quimbares


Era normal a entreajuda das várias secções, feita pelo pessoal contratado, com um horário de trabalho muito alargado e, mesmo assim, com grandes dificuldades, de que se ressentia principalmente a secção de Salga e Seca que, por este facto, teve desde sempre fraca capacidade de produção.

Não se fazem referências ao KARAKUL, pois nunca tive qualquer ligação com essa secção. Apenas lá fui uma vez, de visita, a mais de 200 quilómetros de Porto Alexandre, relativamente perto do sopé da serra da Chela, no caminho para o Lubango (Sá da Bandeira).

O pessoal aqui indicado refere-se exclusivamente ao período que vai de meados de 1943 a 1950.


Fim

Relembrando Porto Alexandre IV



RELEMBRANDO GENTE DE PORTO ALEXANDRE

por Alfredo Baeta Garcia

Parte IV


Finalmente cumpre referir três instituições com valores e influências diferentes no meio social e económico alexandrense:

CLUBE RECREATIVO ALEXANDRENSE
Implantado num velho edifício no centro da Vila, era o local onde se realizavam todas as manifestações sócio-culturais, tais como frequentes bailaricos, reuniões de qualquer natureza e salas de jogos para "batota" quer a dinheiro, quer a maços de cigarros a que não faltavam clientes, especialmente entre as cinco horas da tarde e a hora de jantar. Foi também o local onde, pela primeira vez, se realizaram sessões regulares de cinema. Possuía uma Guiga para regatas a remos, que nunca vi em cima de água e deve ter acabado carcomida.

INDEPENDENTE DE PORTO ALEXANDRE
Clube cuja finalidade era o desporto mas que, nesse tempo, não ia além das intenções, pois não tinha quaisquer instalações para o efeito. Por volta de 1953 adaptou um areal nas traseiras da antiga Delegação Marítima a campo de futebol. Muitos anos mais tarde veio a Ter uma das principais equipas dessa modalidade em Angola chegando, pelo menos uma vez, a disputar a Taça de Portugal.

SINDICATO DE PESCA, depois GRÉMIO DOS INDUSTRIAIS DE PESCA
Foi fundado em 1932 por iniciativa do meu conterrâneo Dr. António Alberto Torres Garcia, sendo de longe a maior obra sócio-económica do Distrito, se não mesmo de toda a colónia de Angola, vindo Benguela, anos depois, a seguir o exemplo, pois veio organizar a indústria de peixe seco e posteriormente a de farinhas e óleos de peixe, que até àquela data vegetavam ao sabor dos interesses de aventureiros e oportunistas à custa dos pequenos industriais de pesca.
A importância deste organismo foi de tal maneira válida que as suas estruturas iniciais se mantiveram inalteradas, no fundamental, até ao fim, até 1975 e parece que mesmo para além dessa data.
A sua secção local era a maior do Distrito, instalada em amplos e modernos armazéns servidos pela maior ponte-cais, onde atracavam as embarcações de cabotagem de toda a costa e Congos.
Infelizmente esta época não produziu nenhum cronista local com a capacidade para fazer a história dos últimos setenta anos com a dignidade e a arte que merece. A única coisa que conheço em relação a Porto Alexandre é o belíssimo conto de Bobela Motta – Conflitos de Jurisdição – que é muito pouco.




RELAÇÃO DOS ESTABELECIMENTOS COMERCIAIS EXISTENTES EM PORTO ALEXANDRE EM FINAIS DE 1943

1 Francisco da Conceição
2 António Trocado
3 Albérico Sampaio
4 Adérito Sanches
5 Francisco Carvalho
6 Tavares (Andrade & Abano ?)
7 Carlos Pessoa
8 Vergílio Peleira
9 Conserveira
10 Sul Angolana
11 Parceria de Pesca
12 Tomé Tendinha
13 Andrade & Abano
14 Guimbra
15 Viúva Tavares
16 Antunes da Cunha
17 Sena & Ribeiro